quarta-feira, 29 de junho de 2016

SAUDADES DE KAPI

 
Em abril deste passado fez-se um ano sem a presença física em nossas vidas, do meu amigo Kapi.  Eu o conheci nos áureos tempos do Teatro Escola de Cultura Dramática, no qual tínhamos Orávio de Campos  Soares como Mestre. Era os idos da década de 70, plena ditadura militar. Kapi se enveredou pelos palcos e revolucionou com o teatro em Campos dos Goytacazes, interior do estado do Rio de Janeiro, minha terra natal. 
Nascido Antonio Roberto de Góis Cavalcanti, Kapi tornou-se um dos teatrólogos, diretores teatrais e poetas mais geniais que conheci. Ousado, Kapi lançou o primeiro nu frontal, para um ator, em Campos dos Goytacazes, trabalhou com Orávio em “O arquiteto e o imperador da Assíria” de Fernando Arrabal. O trabalho poético de Kapi está no “Manual da criação de ratos”, livro de 1984 com a poeta Eloah Marconi. Nele estão poemas como “Canção amiga”, “Sangue na cidade e “Aquarela”. A peça teatral “Pontal” foi baseada em poemas de sua autoria e de outros autores, tais como Aluysio Abreu Barbosa, Artur Gomes e Adriana Medeiros. Kapi também assinou a direção de “Romanceiro da Inconfidência” de Cecília Meireles e “Profanus”, peça revolucionária para a época, de Antonio Roberto Fernandes. Como ator, Kapi esteve em vários espetáculos, tais como “O pagador de Promessas” de Dias Gomes, com direção de Gildo Henriques, no qual interpretou um repórter. Ele inaugurou o novo Teatro Trianon, dirigindo a peça “Gota d`água” de Chico Buarque e Paulo Pontes. A última montagem assinada por Kapi foi “O Anjo Pornográfico”, de Nelson Rodrigues, encenada no Sesc em 2012.
Após 11 dias no hospital Ferreira Machado, Kapi se foi dia 2 de abril de 2015. Seu velório e enterro recebeu milhares de pessoas em sua despedida.
Irreverente e um cara a frente de seu tempo, ainda em vida Kapi deixou sua mensagem, de como queria que fosse lembrado: “Um desvairado que não coube em si”
Um exemplo de sua criatividade e genialidade está no poema “Um rio”. Escrito entre 1977 e 1978 este poema é o retrato perfeito do atual estágio do Rio Paraíba do Sul. Como bem disse Artur Gomes “Exemplo mais que perfeito de que Poeta é a Antena da Raça.” A lembrança de Kapi  sempre deixará  saudades. Abaixo o poema.
UM RIO
Era uma vez…
Um rio
Que de tão vazio,
já não era rio
e nem riachão,
tão pouco riacho.
Não era regato,
nem era arroio,
muito menos corgo.
uma vez…
um rio
que, de tanta cheia,
já não era rio
e nem ribeirão.
Era mais que Negro,
era mais que Pomba,
era mais que Pedra,
era mais que Pardo,
era mais que Preto,
bem maior ainda
que um rio grande.
Era uma vez…
um rio
que de tão antigo
era temporário,
era obsequente,
era um rio tapado
e antecedente.
Que não tinha foz,
que não tinha leito,
que não tinha margem
e nem afluente,
tão pouco nascente.
Mas que era um rio.
Não era das Velhas,
não era das Almas,
não era das Mortes.
Era um Paraíba,
era um Paraná,
era um rio parado.
Rio de enchentes,
rio de vazantes,
rio de repentes:
Um rio calado:
Sem Pirá-bandeira,
Sem Piracajara,
Sem Piracanjuba.
Em suas águas
não havia Pira
não havia íba,
não havia jica,
não havia juba.
Nem Pirá-andira,
nem Piraiapeva,
nem Pirarucu.
Era um rio assim:
Sem pirá nenhum.
Mas que era um rio.
Era uma vez….
Um rio.
Que, de tão inerte,
Já não era rio.
Não desaguou no mar,
não desaguou num lago,
nem em outro rio.
É um rio antigo,
que de tão contido
não é natureza.
Um dia foi rio,
há muito é represa.
Antônio Roberto Góis Cavalcanti (Kapi)



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